29 março 2009
Lance de caça em 4 actos contínuos
Ilha Terceira, 26 de Agosto (aprox. 09:30), mar de onda larga e quase rasa, muito sol, vento fraco. Visibilidade vertical na água: 30 metros.
1º ACTO
Estava a fazer um agachon num dos cabeços de uma baixa da ilha 3ª, a cerca de 15 metros de profundidade, varrendo o azul em frente, ao lado, para trás e para baixo, quando no fim da apneia surge um lírio no meu flanco esquerdo. O lírio nadava vagarosamente na minha direcção, pondo em risco a minha apneia e consequentemente o agachon e, acima de tudo, a captura.
Os lírios são o que me levam àquela baixa, apesar de nesta altura ser possível encontrar outra bicharada de grande porte, nomeadamente atuns e wahoos. Como tal, este lírio era tudo o que queria para a minha jornada de caça: Nem mais, nem menos: Apenas aquele lírio!
De frente, o lírio aparentava ter cerca de 12 a 15kg, mas a sua cor cinza esbranquiçado era o prenúncio para outro calibre… Mas quem não me deixava estar para ali com pensamentos tão mundanos era a minha apneia, que estava a entrar no amarelo… Por isso, joguei a minha cartada: Colei-me mais à pedra, baixei a cabeça, recuei um pouco, entrincheirando-me mais. A coisa parece funcionar e o lírio, de curiosidade redobrada, acelera na minha direcção. Agora, mais perto, apercebo-me da largura da sua testa e subo a fasquia para os 20kg. Mas a excelente visibilidade ainda me toldava a percepção…
O lírio, agora a 5 metros, resolve começar a afundar… É a minha vez de jogar: Avanço sobre ele e desço, de arma esticada, na sua intercepção, disparo na oblíqua à cabeça e… Desespero!!!... A ponta do arpão não só não o trespassa como parece ficar alojada apenas na zona das brânquias do lado direito e a barbela parece estar na iminência de se desprender!!!... O lírio dispara para o fundo. CRIME!!!!! Injurio-me de toda a forma e feitio, com todos os nomes que me lembro ter conhecido, mas não chega, Neptuno encarrega-se - e bem! - de me deixar de consciência pesada, estatelada no fundo do mar.
2º ACTO
O fio do carreto já vai a meio e o peixe não parece querer abrandar. Dilema: Não quero colocar muita tensão no fio, mas sei que não posso deixá-lo chegar ao fim… As coisa acabam por acontecer mais rápido do que possa prever e ditar… Vejo o fio evaporar-se do carreto e aumento a tenção mordendo os lábios, de mau presságio… Finalmente o peixe parece nivelar a cerca de 25-30 metros de profundidade... Ufffff!!!!... Aproveito para chamar o João Pedro: “O peixe está mal trancado, tens de dobrar o tiro!!!”.
Novo estrebucho, e novo afundanço que me leva o resto do fio!!!... Começo imediatamente a nadar na direcção do peixe, tentando a todo o custo minimizar a tensão e recuperar algum fio, mas sem sucesso… O peixe dá mais duas sacudidelas e a força é, pela primeira vez, transmitida na íntegra até às minhas mãos: Estou a reboque e apenas tive tempo de dizer para mim próprio: “Quando perderes este lírio, vais voltar para o barco, arrumar o material e vais-te praguejar o resto do dia, “tal homem tolo”!”… E o peixe arrasta-me para baixo da superfície, sem que tivesse tempo de encher os pulmões!... Diminuo a velocidade de natação e concentro-me na apneia. Estou a 3 ou 4 metros de profundidade, sem ar nos pulmões e a ser arrastado por um lírio com mais de 20kg “preso por um fio”… Tudo está por um fio! Paro de nadar e tento relaxar para ganhar apneia. Nesta altura, em que estou a ser rebocado, surpreendo-me com o facto do arpão não se ter desprendido depois de tanta força de tracção. Estou de novo à superfície: Segundo Uffff!....
Começo a ganhar algum fio e peço ao João que tente chegar ao lírio. Não é coisa que se peça, pois mergulhar a 25 metros a partir de uma situação de natação moderada, não só não é fácil como pode ser perigoso. Tentou por duas vezes mas sem sucesso. Entretanto o lírio inverte o sentido e sinto o fio bambo… Recupero tudo o que posso, pois agora sou eu que quero manter alguma tensão. Parece estar muito mais perto, talvez uns 18 metros, quando dá outro sacão e vejo, para meu desespero, o arpão soltar-se!!!!!...
3ª ACTO
Mas em vez de repetir a cena das injúrias e de dar socos na água e gritos para dentro do tubo, resolvo não desistir!!!... Não desistir?!?!... O que se passou é que me apercebi que o peixe não estava em boas condições, depois destes extenuantes 15 minutos e parecia manter exactamente o mesmo comportamento que tinha tido antes. Ou seja, mantinha-se na casa dos 20-25 metros e nadava na mesma direcção e com a mesma velocidade, apesar de não ter nenhum arpão a retardá-lo. Vi a luz ao fundo do túnel…
Disse ao João para não o perder de vista e recolhi os cerca de 40 metros de fio do carreto. Nesta operação perdi o peixe de vista, mas segui sempre, 10 metros atrás, as barbatanas do João. Vi-o fazer mais duas tentativas, mas sem sucesso. Recuperei a posição e coloquei-me ao lado do João. Ele volta a mergulhar na sua derradeira tentativa: Cansado, tenta alcançar o lírio que parece nadar devagar, mas que na verdade só está a nadar devagar para o reino dos peixes e não para o reino dos homens-peixe… Força um pouco e quando julga ter o peixe finalmente a tiro, a 21 metros de profundidade, dispara… Mas o arpão nem sequer lhe toca, o peixe estava mais fundo do que lhe pareceu. Uma vez mais, a boa visibilidade a fazer das suas. O João nada para a superfície em dificuldade e apercebo-me que estava a pôr um pé fora dos seus limites: Alto! Pára e pensa! É nestas circunstâncias que a caça às vezes se torna perigosa, mas não pode!!!...
Esta última descida do João revelou dois pontos importantes: 1º- O lírio está realmente ferido e cansado (apesar do aparente mau tiro) e, acima de tudo, não esboçou a menor intenção de fuga ao aproximar de um caçador (É neste momento que sinto que o lírio poderá ser realmente capturado, apesar de até aqui tudo parecer indicar o contrário); 2º- O João estava a cometer o erro de estar a descer na oblíqua, ou seja, como estava a nadar à vertical do lírio, sempre que descia, descia na oblíqua para acompanhar o lírio. Por outras palavras em vez de ter descido a 21 metros é como se tivesse descido a um pouco mais, o que para quem estava a pisar os limites se torna ainda mais desvantajoso.
4º ACTO
Eu estava com o batimento cardíaco relativamente baixo, pois não tinha feito uma única descida desde que tinha arpoado o lírio. Avanço na direcção do peixe, ultrapassando-o e deixando-o aproximadamente 10 metros para trás. Enquanto nado, preparo a apneia e sinto que estou prestes a jogar a cartada final: Inspiração até quase rebentar, tubo fora, pato, mergulho na vertical, arma colada ao corpo e apenas mexo a cabeça para controlar a posição do lírio. Aos 15 metros páro de bater as pernas e deixo-me cair na direcção do peixe. Embora estivesse unicamente concentrado na técnica da imersão e na aproximação/disparo ao lírio, ao sentir-me acelerar significativamente (estava mal lastrado para esta profundidade (aprox. 2kg em excesso) e ao sentir a água mais fria e um ligeiro aperto nos pulmões (devido à pressão), apercebo-me que estou a mais de 20 metros e que não quero esticar a corda. Olho para o lírio e vejo que este já me tinha ultrapassado ligeiramente, corrijo a direcção, estico a arma e faço uma pausa antes de disparar. Fala-me a voz do interior: “Não dispares por que sim, porque tens de disparar, porque já tens o peixe mais ou menos a tiro... Espera pelo momento certo!”. Segui o conselho que estou em crer faz a diferença em muitos lances de caça, pois já perdi vários peixes por não ter dado a mim próprio aquele segundo de pausa para confirmar que estava tudo certo. Deslizei mais um pouco e, aí sim, vi com toda a nitidez o lírio, a sua pele, a forma dos ossos da cabeça, o olho – Agora sim estava realmente perto! - E por isso, quando premi o gatilho, sabia que não ia falhar. Dito e feito, o arpão entra quase na vertical, de trás para a frente, no centro da cabeça do lírio, no que parecia ser um tiro mortal. Mas não, o peixe contorce-se, dobra-se e roda sobre si próprio, fazendo o arpão parecer uma banana. Mais um olhar para o arpão e confirmo que nada mais me irá fazer perder este peixe: O arpão está definitivamente bem cravado na sua cabeça e ele perderá a réstia de força e vigor em breve.
Subo a parede de água e à superfície recolho o fio. Vou de encontro ao lírio, agora a apenas meia dúzia de metros de profundidade, e trago-o para a superfície, com este ainda a dar uns vigorosos sacões de cauda. Remato-o de seguida.
Grito de exaltação, estava realmente feliz. Feliz por ter capturado um belo exemplar, mais feliz por não ter perdido um belo lírio, quem sabe ferido mortalmente. Mas, acima de tudo, feliz por ter vivenciado este memorável lance de caça, em quatro actos, e sempre no arame!…
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15 comentários:
Fiquei sem respiração (para além da notável natariva)!
E o destino do peixe???
Grelhado, é óptimo.
Acho que vou mais cedo para a entrega do estágio...
Ahahahah!!!....
Claro que não faltará peixe para a tua tão esperada entrega de estágio!... Só terás mesmo é de vir até cá!!!... Ameças não contam...
Grazie,
Grelhado, sem dúvida!
Fiquem bem,
Luís
PS- Grazie: Confesso que gostei da "natariva", mas deves estar a precisar de umas férias!! Ahahah!...
"Ameaças" queria eu dizer...
Férias... Pois!...
Luís, pela boca morre o peixe! Ahahah!...
Claro que...também estou a precisar de férias!
Na Páscoa vou já tratar deste assunto!
Deixa-me corrigir ... antes que alguém se lembre!...
Nesta postagem, até nem foi pela boca que o peixe morreu!
Foi mesmo tortuosamente caçado!
que puta de nobela mexicana!!
pescadores, caçadores e outros mentirosos...
já se aguarda a saga da apanha da lagosta piada pelas patas de trás mas que fugiu ladeira a cima e se meteu num buraco cheio de congros esfaimados, exactamente quando a garrafa de mergulho entrava na reserva, e por azar dos azares naquele dia tinhas-te esquecido de amolar a faca de mergulho.
Já pareces o magnifico lobo do mar alexandre Monteiro nas suas narrativas no forum de mergulho
abc
indubitavel leveza do ser
Olha outro mentiroso! Perdão, caçador!.... Há quanto não tínhamos o velho Dudu entre mangas!...
Vai aparecendo!
Eles andem aí !!
Mas o Dudu era mais caça grossa lá prás savanas de santa barbara !!
Interpretação das Pérolas de um pescador com vocação para argumentista de novela da TVi:
"O lírio nadava vagarosamente na minha direcção, pondo em risco a minha apneia e consequentemente o agachon e, acima de tudo, a captura."
O lirio estava-se a cagar para o teu agachon!
"Por isso, joguei a minha cartada: Colei-me mais à pedra, baixei a cabeça, recuei um pouco, entrincheirando-me mais"
Apesar de estar cagado de medo, tentaste ser mais esperto que o lirio.
"Mas a excelente visibilidade ainda me toldava a percepção… "
Estávas tão cagadinho de medo que mesmo com a visibilidade toda não sabias o que fazer.
O lírio, agora a 5 metros, resolve começar a afundar… É a minha vez de jogar: Avanço sobre ele e desço, de arma esticada, na sua intercepção, disparo na oblíqua à cabeça e… Desespero!!!... A ponta do arpão não só não o trespassa como parece ficar alojada apenas na zona das brânquias do lado direito e a barbela parece estar na iminência de se desprender!!!... O lírio dispara para o fundo. CRIME!!!!! Injurio-me de toda a forma e feitio, com todos os nomes que me lembro ter conhecido, mas não chega, Neptuno encarrega-se - e bem! - de me deixar de consciência pesada, estatelada no fundo do mar.
Lindo!! parece uma passagem dos Maias do Eça de Queiroz
Ufffff!!!!... Aproveito para chamar o João Pedro: “O peixe está mal trancado, tens de dobrar o tiro!!!”.
Esta tudo dito! Tinhas o expert contigo, a história ia acabar bem!
Esta última descida do João revelou dois pontos importantes: 1º- O lírio está realmente ferido e cansado (apesar do aparente mau tiro) e, acima de tudo, não esboçou a menor intenção de fuga ao aproximar de um caçador (É neste momento que sinto que o lírio poderá ser realmente capturado, apesar de até aqui tudo parecer indicar o contrário); 2º- O João estava a cometer o erro de estar a descer na oblíqua, ou seja, como estava a nadar à vertical do lírio, sempre que descia, descia na oblíqua para acompanhar o lírio.
Erro? o Mr John cometeu um erro? hummmm????
Fala-me a voz do interior: “Não dispares por que sim, porque tens de disparar, porque já tens o peixe mais ou menos a tiro... Espera pelo momento certo!”.
Estavas a passar pelo mesmo que a Alexandra Solnado. Ela fala com Deus tu com a voz interior. São os gases do intestino.
E por isso, quando premi o gatilho, sabia que não ia falhar. Dito e feito, o arpão entra quase na vertical, de trás para a frente, no centro da cabeça do lírio, no que parecia ser um tiro mortal. Mas não, o peixe contorce-se, dobra-se e roda sobre si próprio, fazendo o arpão parecer uma banana. Mais um olhar para o arpão e confirmo que nada mais me irá fazer perder este peixe: O arpão está definitivamente bem cravado na sua cabeça e ele perderá a réstia de força e vigor em breve.
Esta passagem esta linda, não tivesse a palavra peixe lá no meio e julgava-te em plena guerra dos mundos
Grito de exaltação, estava realmente feliz
Acreditamos que sim. Sobretudo pelo fato de mergulho ser estanque e não se notar a cagadela e mijinha de pavor que fizeste.
abracinhos
a insustentavel leveza de ser
Hummmm, Inbeja ? não sei !
enfim tudo isto é lindo tudo isto são mangas !!
Imbeja, sem dúvida! E muita!!!!!
Gente fraquinha...
A foto é, sem sombra de dúvida, muita bonita!...
"Advinha Quem Vem Jantar?"
TVi!?!?!? O que é isso???
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